Playground significa recreio, espaço privilegiadamente exterior de diversão, parque infantil apenso ao solo. Gosto do entendimento não literal do termo e de como soa em inglês. Aqui a palavra remete para a prefiguração de uma instalação, no território que é o das paredes disponíveis da galeria, ocupado com múltiplas pinturas provenientes de diversas exposições em que participei, numa seleção de 101 telas, desde 1993 até 2018. A proposta é a de uma revisitação a uma parte do meu trabalho de pintura, nestes últimos 25 anos, essencialmente através do humor, da desconstrução e da descontextualização.
Um conjunto de combinações improváveis, por aproximação à ideia de coleção, organizada segundo o princípio de Gabinete de Amador (já outrora ensaiado por exemplo em Corbeille (2007), na Sala de exposições da Universidade da Madeira, e em Horizonte Móvel (2008), no Museu de Arte Contemporânea do Funchal), replica a apresentação expositiva em contexto doméstico de sala de estar/sala comum, de casa/apartamento/atelier, e simula o exercício de múltiplas possibilidades de contaminação e de deriva visual. A reorganização das telas (muitas delas intencionalmente alteradas para o efeito) convocando pinturas mais antigas retiradas dos contextos para os quais foram inicialmente pensadas, passando a ser colocadas na vizinhança de outras mais recentes, gera novos enredos e narrativas. A manipulação faz-se, pela disparidade de formatos e escalas, pela diferença de tratamentos matérico-pictóricos, ou por forçados encontros de assuntos e ideias e indica o mote para a afirmação deste puzzle game.
Interiores mobilados, inventados para uma Fortaleza de São Tiago, em Andar Modelo (2009, Museu de Arte Contemporânea do Funchal), são agora possibilidades de espaços interiores para as arquiteturas inacabadas de Estilo Maison (2015, Delegação da Ordem dos Arquitetos da Madeira) ou das casas abandonadas em O Lugar dos Prazeres (2012, Galeria dos Prazeres, Calheta). Uma pintura intitulada Piscina vazia da Quinta Magnólia (Estilo Maison), aparece oportunamente ao lado de uma outra, Quartel dos bombeiros, retirada de Presépio a 150 metros (2007, Casa das Mudas, Calheta). Afinidades formais arrumadas por assunto ou pela solicitação da cor ou densidade da tinta. Uma pintura matérica de um Wedding cake, com andares (2006, Representantes de quarto, Casa Abraço, Funchal), parece estar a ser alicerçada por tapumes espatulados da pintura Meio-dia (Presépio a 150 metros). Uma vista de drone do piso superior do prédio onde outrora residia o Supermercado Caju, na pintura intitulada Rua da Carreira, no112, aninha-se a um beliche de dois andares. Um relógio despertador ampliado faz-se aproximar e toma o lugar, daquele da mesma cor, na dupla fachada da fábrica Hinton, em A Fábrica do Açúcar (2008, Galeria da Quinta Palmeira, Funchal).
Uma menina disfarçada de mulher da Nazaré, numa festa de Carnaval no Ateneu do Funchal, nos anos 70 do século passado (um autorretrato), em Sobre Mesa (2013, Ateneu Café, Funchal), pisca o olho a um igualmente datado Bedford (2018, Museu de Arte Sacra do Funchal). Uma cama de dossel encosta-se a uma casa indefinidamente em construção. Um quarto triplo com Wi-Fi seduz três casas em banda, com paredes de reboco. Peluches liliputianos sentados num arbusto aguardando um chá de macela, num fundo liso. Numa hipotética playhouse, uma boneca desmembrada de Fazedores de Nuvens (1996, Teatro Municipal Baltazar Dias), acena em simultâneo para os bustos sem braços da montra dum já ido Salão Londrino e para um Mickey Mouse de braços abertos, alojado numa outra montra com a mesma sorte, na cidade Invicta (Representantes de quarto). Salas de espera vazias e alguém sentado num muro à espera.
Cisnes apreensivos (Representantes de quarto), duplamente descontextualizados, em diálogo com perplexas figuras miniaturais de barro (Presépio a 150 metros). Meia casa pintada de fresco (Estilo Maison), pronta a alugar a uma intriguista Pantera cor-de-rosa (Representantes de quarto), acolhe um interior com paredes de tecido e mezanino debruado com folhos azuis, de (1993, Colectiva, Galeria Porta 33). Uma gelatina ampliada (Representantes de quarto) cola-se como íman a um frigorífico minúsculo, impedindo a passagem, em Andar Modelo. Bibelôs falantes dos que mudam de cor conforme a temperatura atmosférica. Todos concorrem para uma certa dose de romance, perigo e aventura e podem ser espiados no seu propósito inicial em: www.filipavenancio.pt
Entre uns e outros elementos, situa-se aquele que é o meu território de investigação na pintura: a compulsão por casas, por projetos que problematizam uma certa ideia de espaço e de lugar, quer seja interior ou exterior, existente ou já demolido; o apelo por volumetrias arquitetónicas, simultaneamente desniveladas, complexas, labirínticas, impossíveis de habitar e de descrever; construções simples, sofisticadas, com anexos, recantos, passagens, alpendres e sacadas; vazias, recheadas, despojadas ou repletas de objetos e detalhes insignificantes e valiosos e o puro exercício da pintura, a atração cada vez maior pela cor do cimento e a inapelável necessidade de perseguir e apropriar-me da pele das paredes, camada sobre camada, tela sobre tela em narrativas enviesadas ou não.
Utilizar a pintura ironicamente para a pensar. E o título desta revisitação bem podia ser…
Playwall.
Fevereiro de 2019
Filipa Venâncio
Título: Boneca
Técnica: Acrílico s/tela
Dimensões: 20X30cm
Ano: 1996 – 2019
Exposição: Fazedores de Nuvens
Local: Teatro Municipal Baltazar Dias, 1996